segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A Barata


Não é a AIDS, nem o câncer, nem o cartão de crédito estourado - o arqui-inimigo do Homo sapiens é um inseto de poucos centímetros de comprimento que atende pelo nome "barata".

Entro na cozinha e lá está ela, grudada na parede, me olhando com seus olhos ameaçadores, me enviando mensagens telepáticas: "Vou te atacar, humano desprezível. Vou andar em você com minhas perninhas grossas e peludas. Debater minhas asinhas finas e fedorentas em sua cara branca. Sobrevivi ao apocalipse dos dinossauros, ao dilúvio, à bomba atômica. Não vai ser você, em sua insignificância existencial, que vai me deter."

Ave Maria, mãe de Deus, rogai por nós. E agora? Atravesso a cozinha cautelosamente, pisando em ovos, e ela mexe suas anteninhas. Caramba, como é grande! Certeza que voa! Droga, por que fui pensar nisso agora? Não vou conseguir dormir com esse bicho vivo dentro de casa.

Chego no quarto e jogo no Google: Como matar uma barata à distância, pesquisar. Nenhuma salvação. E você sabe como é: se não consta no Google, não existe. Nada neste mundo poderá me salvar. Mando uma mensagem para o Guilherme no Whatsapp. Guilherme, uma barata, o que eu faço? Joga detergente que ela morre. E se ela voar? Eu li que elas morrem, Bruno. Mas como vou fazer isso? Sei lá.

Me imagino jogando detergente na bicha à distância. Um erro e tudo estará condenado: ela voará em mim. Arrancará minha alma. Devorará meu ser. Maldito bicho, maldito Darwin, maldito Kafka! É isso! Kafka! A barata do Kafka morreu de tristeza. Simplesmente se matou. Bolo um plano. Xingarei ela de todos os nomes horríveis para uma barata. Direi que ela é fedorenta, gosmenta, feia, assustadora. Que sua existência é inútil, que ela não faz a menor diferença no equilíbrio ambiental, que é um saco de doenças com asas e anteninhas e perninhas arrepiantes.

Jogo "Barata" na Wikipédia. Preciso enfrentar o medo, e nada melhor para derrotar o inimigo do que conhecê-lo a fundo. Estado de conservação: pouco preocupante. Maldita! Safada! Por que não entra em extinção? Por que os micos, as baleias, as pessoas inteligentes, e não as baratas? "Uma curiosidade é que podem viver uma semana sem beber água e até um mês sem comer. Conseguem perceber o perigo através de mudanças na corrente do ar à sua volta. Elas possuem pequenos pelos nas costas que funcionam como sensores, informando a hora de correr." Ou de voar. Ou de atacar. Merda. Desisto da Wikipédia. Tem foto demais de barata pro meu gosto.

Decido me trancar no quarto, estico uma toalha no vão entre a porta e o piso. Pronto. Estou seguro. Ela não vai entrar aqui. Chupa essa, barata. Tantos séculos de evolução e não aprendeu a ultrapassar paredes. Losers. Noobs. Quem é a fodona agora, hem? HEM?!

Sento no quarto, mexo um pouco no Facebook, todas as janelas, portas e entradas de baratas (e de ar) lacradas... Estou seguro agora. Mas... tá calor aqui, né? Me deu uma sede. Cacete. Se eu for à cozinha, ela vai voar em mim, depois de todos esses insultos desafiadores. Vai dizer "Olha só quem saiu do esconderijo! Não consegue ficar uma semana sem beber água, é? Quem é o fodão agora, hem? HEM?!" e vai voar em mim.

Decido passar sede. Se ela pode, por que eu não posso? Sou um ser evoluído, certo? Racional e dono dos meus instintos. Certo?

...

Certo?

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Demônio

Finalmente consigo pegar no sono, por volta das três da manhã, quando acordo com o barulho da porta do quarto fechando. "Mas ela já estava fechada!", penso. Então me lembro que havia assistido a um vídeo de exorcismo no YouTube minutos antes de dormir.

Fodeu! É o capeta! Desbloqueei um portal no meu quarto, invoquei o mal. Vou acordar amanhã possuído, falando grego, latim, hebraico ao contrário, vomitando abacatada.

Viro hetero e evangélico na hora! Começo a orar, pedir perdão pelos meus pecados, prometer que amanhã mesmo terminarei meu namoro anticristo. Invoco Deus, Marco Feliciano, Silas Malafaia. Encarno a Cassiane e começo a cantarolar mentalmente "Jesus o filho de Davi está passando aqui, até a orla do vestido Dele faz curar, pois há virtude e há unção, toque agora, estenda a mão..."

Um ruído na escrivaninha do computador interrompe minha unção cassianística. É ele! Vai pular em cima de mim, me pegar pelos pés, morder minha bunda. Meu Deus, socorro, Senhor! Eu preciso de ti, ó pai, entra na minha casa, no meu quarto, na minha vida!

Justo agora que eu consegui o emprego que eu queria? Justo agora que está dando tudo certo? Não posso ser possuído, não é possível! Ir trabalhar possuído dá justa-causa! O que eu vou falar pro meu namorado? "Não é você, sou eu... e o capeta dentro de mim"? O que meus pais vão pensar? Eles, que me criaram com tanto amor, carinho e momentos de constrangimento público, pra isso? Pra ter que acordar e ver o filho deles andando de mesinha pela sala, gritando ME POSSUA, matando cachorro a grito, dando mortal-de-frente-mortal-de-costas, igual à Barbia-mortal-de-frente versão 2 em 1?

Outro barulho no quarto faz com que eu me cubra até a cabeça. Morro de calor e acredito que já fui puxado ao inferno. Durmo assim e acordo no dia seguinte sem nenhuma língua nova e desconhecida sendo pronunciada, mas ensopado de suor.

Demônio, mesmo, é nossa imaginação.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Ah, o Natal!

O Natal é essa época do ano em que todo mundo parece estar possuído pelo ritmo ragatanga, mas na verdade a entidade que toma posse do ser das pessoas logo no comecinho de novembro (porque o Natal começa cada ano mais cedo) é ele, o famoso espírito natalino.

Mas, afinal, quem é ele, onde vive, de que se alimenta, como se reproduz? Sexta no Globo Repórter. Mentira, hoje, neste blog novo. Eis a resposta: o espírito natalino não é paz, compreensão, aceitação e solidariedade. O espírito natalino é essa loucura que envolve compras, compras, encheção de saco de funcionários de shoppings, trânsito mais louco do que o normal e mais compras. Porque o Natal acontece em função dos presentes que você tem que comprar pra todo mundo que você ama, mas é importante que você faça isso na última hora possível, porque você ama tanto essas pessoas e tem tanta consideração por elas que decidiu comprar tudo por impulso, sem parar para escolher algo bacana com cuidado e tempo.

Eis que saio de casa hoje decidido a encarnar o verdadeiro espírito natalino (aquele da compreensão e tal). Já que trabalho em um shopping, a catedral sagrada do Natal (tem um papai Noel gigante na porta, com o qual os pais obrigam seus filhos a tirarem foto - mesmo que eles morram de medo daquele boneco imenso, vesgo e envergado para frente, como se fosse cair a qualquer momento em suas pequenas cabeças - e ao qual os mesmos filhos aterrorizados são obrigados a agradecer, depois de um beijinho na mão de plástico, pelo presente que ele trará amanhã), nada mais justo do que tentar fazer parte disso, mas de forma correta.

O primeiro teste do espírito natalino politicamente correto foi o trânsito. Deixe-me dizer uma coisa: eu vivo em uma cidade em que as pessoas são incrivelmente imbecis atrás de um volante ou guidão. Ninguém dá seta, ninguém respeita pare, semáforo, mão e o direito de ir e vir (e estacionar onde veio) do próximo. Quando a época em questão implica em pessoas desesperadas por compras de última hora, então, a cidade vira um caos. E pode parecer bairrismo idiota, mas quando eu leio a placa do carro da frente e ela diz que seu motorista é cidadão de alguma das cidadezinhas pequenas ao redor, minha atenção para freadas bruscas, ultrapassagens insanas e conversões imprudentes quintuplica. Mas ok, compreensão, mentalizo. É Natal, somos todos iguais, morando em Rio Preto ou em Tanabi. Sigo em frente.

Quinhentos e quarenta e nove semáforos dessincronizados, setecentas freadas bruscas, cento e trinta e três xingamentos mentais e sete princípios de infarto depois, chego no meu local de trabalho: a maior livraria da cidade, no shopping mais movimentado da dita cuja. Nem cogito a hipótese de procurar uma vaga no estacionamento do shopping. É véspera da véspera de Natal, o estabelecimento deve estar uma loucura e deve ter carro estacionado até nas copas das árvores. Então estaciono fora, mesmo, e corro para a livraria porque, graças ao trânsito, estou cinco minutos atrasado.

Minhas suspeitas se confirmam quando entro na loja. Tem criança berrando os pulmões fora, tem madame dando barraco porque o sistema da loja atravou (desculpe-me, senhora, vou me castigar fisicamente quando chegar em casa, porque a culpa é mesmo minha), tem livro de budismo no meio de livro erótico, e tem supervisor regional presente avaliando tudo, justo no dia em que parece que tá rolando um flash mob da Segunda Guerra Mundial dentro da loja. Subo as escadas e me pergunto a que horas aparecerá a Miley Cyrus em sua Wrecking Ball derrubando todas as estantes de vez. Tem Bruno ficando louco? Tem sim, senhor. Respiro fundo, subo as escadas e tento relembrar o mantra: compreensão-aceitação-paz-solidariedade.

De volta ao campo de batalha, com meu avental vermelho-batom-da-Taylor-Swift, eis que surge outro teste de espiritonataliação do dia:
- Você trabalha aqui?
Não, tô de avental porque tô fazendo um bolo. Mas tem que sorrir.
- Sim.
- Tô procurando aquele livro do Augusto Cury, "O Vendedor de Sonhos".
- O primeiro ou o segundo?
- O primeiro.
- Só um instante.
Consulto no sistema. Estoque local: 0.
- Olha, esse livro acabou. Só temos ele por encomenda.
- Não, mas eu vim aqui antes de ontem e tinha.
- Então, tinha mesmo. Mas compraram.
- Não, deve ter em algum lugar.
Em algum lugar deve ter mesmo, mas não aqui, criatura.
- Aqui no nosso estoque está zerado.
- Não é possível, eu vim aqui antes de ontem, a moça ficou com ele.
- Você reservou?
- Não, mas ela ficou com ele. Não tem como você perguntar pra ela se ela guardou?
- Quem era a vendedora?
- Não sei...
Aí, caro leitor, fica difícil exercitar a aceitação-compreensão-paz-solidariedade.
- Espera que eu vou ver.
- Ok.
Procuro no balcão de atendimento, onde ele me indica que deixou o livro com "a moça", e não está.
- É amigo, não tem mesmo.
- Nossa, cara, deve ter.
Não tem, filho! Aceita a perda! Deixe ir! Let it be! Desapega! Ou, no mínimo, encomenda.
- Não tem mesmo.
- Em nenhum lugar? Não está perdido, enfiado no estoque, algo assim?
- Pouco provável. O sistema diz que o estoque local é zero. Olha aqui.
Ele olha, mas parece que não vê.
- Poxa vida, procura ele pra mim.
Respiro fundo.
- Olha, eu posso até procurar, mas se o sistema diz que não tem nenhum, é porque não tem nenhum!
Entendeu ou quer que eu faça uma apresentação em PowerPoint?
- Ok. Obrigado.
Ufa!

Mal me recomponho do princípio de síndrome do pânico que o sujeito me causou, surge uma garota que mal olhava para mim enquanto falava, porque não tirava os olhos do celular.
- Você tem aquele livro "As 5 linguagens do amor"?
Consulto no sistema. Tem! Aleluia! Não vou precisar convencê-la de que zero significa NÃO ME FAÇA PROCURAR ALGO QUE NÃO EXISTE!
- Tenho sim.
- E o "As 5 linguagens do perdão"?
Consulto. Não tem. :(
- Esse, só por encomenda.
- Ah... Eu queria ele.
- Mas posso pegar o "do amor" para você.
- Ahnmmnnmn... *celular, celular, celular*. Você tem "A força do perdão"?
- Esse eu tenho.
Mal me afasto do terminal de consulta para pegar o livro na mesa, ela me interrompe.
- E "Por entre as flores do perdão"?
Mas gente, que mal essa menina sofreu na vida que quer tantoperdoar? É só perdoar, filha. Toma uma aguinha, ouve uma música, fecha os olhos, respira fundo e perdoa. Cristo fez isso sem precisar de livro nenhum.
- Esse, só por encomenda.
- Ah, eu queria esse.
- Mas tem o outro.
- Não, deixa quieto, então. Que horas o shopping fecha hoje?
- Meia-noite.
- Que ótimo! - exclama, feliz da vida. Vai ter mais tempo para comprar. Vai ter mais gente pra encher o saco em um mesmo dia. Imperdoável.
Ótimo porque não é você que tem que trabalhar até tal horário. (Eu também não tenho, porque estou em experiência, mas me solidarizo pelos meus colegas que o farão).

No meu intervalo de janta, fico imaginando qual seria o ponto ideal para instalar uma bomba naquele shopping. Concluo, então, que meu espírito natalino está morto. Sinto-me culpado, mas olho ao meu redor: aquela fúria por compras, como se esse fosse o significado principal da data (como se não fosse...), as pessoas passando umas por cima das outras (nos corredores do shopping, no trânsito, na vida), a gritaria e o desespero que a data da "harmonia e solidariedade" causa nas pessoas. Pergunto-me, afinal, o que é esse espírito natalino que todo mundo diz que tem, mas que ninguém sabe de verdade o que é.